Paulo Martelli: uma ode ao violão
Poucos músicos – brasileiros ou estrangeiros – podem se jactar de ter feito tanto por seus instrumentos quanto Paulo Martelli fez e faz pelo violão, engendrado por uma força motriz que parece não reconhecer limites para realizações cada vez mais decisivas e audaciosas. Apresentá-lo, por isso, é tarefa redundante, já que o reconhecimento massivo dos vários campos de atuação de seu trabalho lhe confere a rara condição na qual o nome antecipa o personagem: Martelli, hoje, é sinônimo de excelência onde quer que essa combinação de letras seja mencionada, desbotando as barreiras entre o adjetivo e o nome próprio.
Primor e rigor, profundidade e intensidade, erudição e inspiração, virtuosidade e espontaneidade, emoção e razão. Mais do que aproximar palavras rimadas, o “modo Martelli” de significar o mundo e a música revela as nuances de um artista e pensador capaz de reunir e potencializar virtudes aparentemente antagônicas, alargando a compreensão de seu tempo, de seus pares e de seu instrumento. Acadêmico? Pós-doutor e doutor por prestigiadas universidades brasileiras, com mestrados e formações na Manhattan School of Music e na Julliard School (Nova Iorque). Pesquisador? Autor de livros aclamados, álbuns de partituras essenciais e artigos científicos publicados nas principais revistas do país. Professor? Ensina regularmente ou como convidado em instituições reconhecidas no Brasil e no mundo, com inúmeros discípulos premiados em concursos nacionais e internacionais. Produtor e articulador cultural? Dentre tantas realizações, os 20 anos do Movimento Violão, iniciativa criada e dirigida por ele, mudaram todos os parâmetros profissionais do instrumento, dando vida a uma série musical sem paralelo em qualquer lugar do globo.
E o violonista? O legado de Martelli para o violão brasileiro é, ao mesmo tempo, único e multifacetado: o do virtuose imparável premiado em diversos certames de prestígio; o do concertista refinado que empunhou o instrumento em templos sagrados da música, como o Carneggie Hall; o do ourives exigente de quem aprendemos a escutar o burilamento das sonoridades, das técnicas, das formas e das interpretações que nos arrastam ao estado de espírito transcendental que somente artistas raros conseguem desvendar. Provas? Felizmente as temos e não são poucas. Além de uma intensa e prolífica carreira como concertista, Martelli vem deixando a sua marca na história de nossa música por meio de finas gravações para programas televisivos e uma discografia que contempla alguns dos mais importantes títulos protagonizados por um instrumentista brasileiro nas últimas três décadas.
Foi assim desde seu CD de estreia, em 1995 (pelo selo canadense GRA), quando o jovem premiado teve produção de Sérgio Abreu (1948-2023), empunhou instrumentos lendários e mostrou rara maturidade musical ao deixar marca própria em repertórios e compositores canônicos, como Diabelli, Paganini e Castelnuovo-Tedesco. Em 2000, o CD Roots revelou que a excelência de Martelli é também marcada pela versatilidade, com a gravação de músicas populares instrumentais e um repertório latino-americano cheio de suingue e vivacidade. Em 2003, sua potência criativa o levou a musicar e lançar em CD as obras do espetáculo O Homem que Odiava Segunda-Feira (Grupo Gestus), trabalho premiado pela Funarte.
Desde então, não parou de produzir gravações antológicas: seja botando na pauta do violão brasileiro a produção de compositores até então pouco visitados, como Zé Henrique Martiniano (Miosótis, Mecânica dos Solos - 2006) e Geraldo Vespar (20 Estudos Populares Brasileiros para Violão, GuitarCoop - 2019); seja nos registros paradigmáticos da obra de J. S. Bach realizados no violão de 11 cordas (alto guitar), frutos de uma longa e profunda imersão de Martelli no universo bachiano, o que lhe conferiu o merecido status de uma das maiores autoridades internacionais na interpretação do mestre barroco.
Dedicatória (2023) não é diferente. Além da primazia do repertório (repleto de brasilidade, com choros, cateretês, jongos e rapsódias contagiantes), das interpretações irretocáveis e da produção impecável (dimensões sempre dirimidas por ele no mais alto nível), o novo CD de Martelli traz um componente afetivo que é, por si, o testemunho inequívoco de uma vida que se confunde com o violão. Nele, estão expressas as músicas que lhe foram dedicadas por alguns dos mais importantes compositores-violonistas brasileiros de diferentes gerações: dos já lendários Sérgio Assad e Marco Pereira aos brilhantes e talentosos jovens Thiago Colombo e Guilherme Girardi, passando ainda por Geraldo Ribeiro e Geraldo Vespar, ícones de gerações sucessivas de instrumentistas.
Isso demonstra que a entrega e o amor de Martelli pelo violão foram capazes de inspirar, em diferentes momentos, personagens de tempos e trajetórias tão distintas, espalhados pelo planeta e que somente por meio dele poderiam se reunir em uma obra única, como se lhe oferecessem – em nome de todos nós, da comunidade violonística – um abraço agradecido e afetuoso, em forma de dedicatórias musicais, por tudo o que Martelli fez e faz pelo nosso instrumento.
O poeta brasileiro Vinícius de Moraes sabiamente descreveu a vida como “a arte do encontro”. Dedicatória, mais do que uma celebração desses encontros musicais e humanos únicos, é também o reconhecimento do casamento perfeito entre um instrumentista e o seu instrumento: a contemplação de um artista que escolheu – com abnegação e dedicação integral – transformar a sua existência em uma verdadeira ode ao violão.
Humberto Amorim
Rio de Janeiro, março de 2023
DEDICATÓRIA
a Sergio Abreu (in memoriam)
1 Cateretê | Suite Brasileira n. 4
(Sérgio Assad)
2 Refúgio n.1
Homenagem a M. Llobet
(Thiago Colombo)
3 Choro Noturno
(Guilherme Girardi)
4 Jongo | Suite Brasileira n. 4
(Sérgio Assad)
5 Choro Canção
(Geraldo Vespar)
6 Cumprimentando (Choro)
(Geraldo Ribeiro)
7 Rapsódia dos Malacos
(Marco Pereira)
Idealização: Paulo Martelli
Gravação: Auditório da Unibes Cultural dias 5/6 e 5/7 de 2023
Engenheiria de som: Waldir Jr
Microfones: AKG C414; 2x Neumann KM184 e Behringer B-2 Pro
Edição: Neil Yonamine
Mixagem e Masterização: Walter Gagliardi Jr
Violão: José Rubio 1967
Cordas: Augustine Regal Blue
Produção Musical: Paulo Martelli
Produção Executiva: Rafael Altro
Assistente de Produção: Juliana Oliveira
Texto: Humberto Amorim
Designer Gráfico: Edson Vargas
Fotos: Lucas Tannuri
Assessoria de Imprensa: Débora Venturini